segunda-feira, 18 de junho de 2007

Um encontro na madrugada (Amor é prosa, sexo é poesia?)


É incrível como algumas coisas me acontecem repentinamente, sem projeto algum.


Minha madrugada tinha um pouco de cada ingrediente para ser bastante tediosa, mas não foi, para minha total surpesa.


Meu irmão precisa viajar dia 27, e para tanto, precisa renovar seu passaporte antes de embarcar.


Não sei se todos têm conhecimento, mas ultimamente é melhor dar um rolezinho no inferno do que tirar um passaporte para andar nos céus.


Foi pensando nisso que meus pais vieram de Piracaia para SP ontem a noite (domingo), e como somos uma família bastante unida, combinamos que cada um de nós ficaria em média 3 horas na fila para o atendimento (o revezamentoa foi agendado a partir das 22 horas), em frente a sede da Polícia Federal, que por sorte é bem em frente a minha casa.


No dia anterior eu tive o prazer de assistir o filme o Fabuloso destino de Amelie Poulain.


Que filminho lindo viu, me emocionei, me ajude Amelie!!! E neste dia também li um texto do Arnaldo Jabor sobre o filme. Maktub. Advinha quem estava na fila dos passaportes?


Ele mesmo, Arnaldo Jabor.


Putz, seria inconveniente demais puxar um assunto sobre o texto dele (que eu tinha amado), ou até mesmo sobre o filme (que eu também tinha amado). Nesta linha de raciocínio, tive uma lucidez momentânea de compará-lo ao Ari Toledo. Pois é, se fosse o Ari Toledo na fila eu pediria que fizesse piadinhas para mim, uma reles desconhecida que ele esbarrou na madrugada?


Claro que não, sem critério uma coisa dessas.


Então comecei a meditar (eu sempre penso demais).


Ia puxar assunto sobre o tempo? Não, não, ali não era um elevador.


Ia falar sobre o caos instalado no Hell de Janeiro? Também não era uma great idea para iluminar a nossa, a minha madrugada.


Pô, vou falar do que então? Nada né. Claro.


Mandei um monte de energia positiva a ele, disse mentalmente que ele me inspira, e que quando eu crescer eu quero ser como ele. Brincadeira, não pensei esta última parte não, afinal, já estou velhinha pra pensar uma coisa dessas (ele nem é tãaaao velho assim - embora estivesse numa fila reservada aos idosos - pasmem).


FONFONNNNNNNNN - era minha mainha chegando para o turno dela, e como boa brasileira chegou que chegou, buzinando em plena madrugada (ainda bem que não há hospitais e maternidades nas redondezas da PF). Acabou-se o que era doce. Acordei do que parecia um sonho, de tão absorta que eu estava em meus pensamentos (ainda buscando um assunto pra puxar).


Well, perdi a oportunidade de trocar umas idéias com o Arnaldo Jabor. As 3 horas do meu turno passaram voando. Mas lá no fundo tenho certeza absoluta que ele amou a idéia do meu silêncio, mesmo eu tendo uma voz sexy e rouca (sei lá se alguém acha isso, mas eu acho). Nos recônditos da alma dele eu pude ver que o que ele mais queria era se passar por mais um. Embora ele seja único, e nunca será apenas mais um. Não para mim pelo menos.


Mainha, não puxe assunto com o Arnaldinho, ele está num intenso momento dele com ele mesmo, recomendei.


Então, voltando ao filme da Amelie, lá vai o texto dele sobre o assunto, escrito em 2004 .... a long time ago,


once upon a time ....




Hoje, só as bestas quadradas serão felizes


Fui ver o filme Amélie Poulain, que está estourando nas bilheterias mundo afora.


Disseram-me que era "esperançoso, um refrigerio para o aterrorizante mundo atual". Armei-me de pipocas e mergulhei no escuro. Adorei. O filme é uma perfumaria , mas eu amei.


Durante duas horas, esqueci de mim mesmo. E descobri a verdade inapelável: eu quero, eu preciso me "alienar", como se dizia antigamente. A "alienação" virou uma necessidade social. O filme é uma fábula simpática de uma "neo-Poliana", uma chapliniana mocinha cheia de compaixão, que modifica a vida dos fracassados e infelizes.


Saí do cinema pensando: Amélie, eu quero ser outro. Não quero ser mais eu. Eu não me agüento mais, quero me "alienar", virar, se necessário, uma besta feliz. Eu fazia filmes, mas a vida me levou a virar jornalista, profissão que adoro, mas que me obriga a uma incessante observação do dia-a-dia, fazendo-me amargurado, num crescente rancor por um país que não se conserta, como queria minha geração romântica.


Por isso, Amélie Poulain, venha me modificar, me faça sorrir alvamente, me traga a baba dos idiotas, venha Forrest Gump, me vidre os olhos de parvoice, venha Prof. Pangloss, me ensinar a cultivar o jardinzinho dos babacas.

Enquanto milhões de árabes se acotovelam em Meca, unidos na única certeza de Alá, nós estamos sós. Não temos Alá; só temos o cinema americano, nossas religiões são ralas, não nos prostam a rezar para Meca, como lagartixas felizes cinco vezes por dia; vivemos dentro da angustiante democracia liberal, que nos amaldiçoa com esta liberdade inútil. Por isso, Amélie Poulain me inspirou uma lista de conselhos de auto-ajuda para nos devolver uma abjeta e deliciosíssima felicidade neste mundo sinistro.


Eia! Avante, românticos sofredores, cidadãos nostálgicos do Bem, aqui vai um Alcorão substituto, um guia de sobrevivência na selva global. O princípio básico é o "Não" - a negação de evidências, a técnica de nada ver, a "conduta de evitação", como fazem os fóbicos. "Não" olhar a miséria nas ruas, evitar os menininhos nos sinais cariocas, principalmente a nova invenção dos pequenos desgraçados, fazendo malabarismos com três bolinhas para ganhar esmola, menininhos esfarrapados diante de BMWs indiferentes.

"Não" olhar mães com nenéns no colo nos meios-fios e, se por acaso, entrarem em nosso campo de visão, imediatamente convocar a moral de classe média de que "essas mães podiam trabalhar, mas não o fazem por preguiça de enfrentar um tanque de roupa". "Não" ver noticiários, nem ler os jornais ácidos e veristas; não ver, por exemplo, os desgraçados sem-teto que serão expulsos à bala no Pará, enquanto o Jarbas Barbalho tem habeas-corpus. Diante da injustiça, blindar-se, lixar a alma, laquear o coração.

Mas, não pensem que somente a "alienação" é um bom procedimento. Podemos ser felizes também com "ideologias". Por exemplo, diante da tal "globalização" da economia, podemos ter duas atitudes. Uma, é acreditar, lívidos de certeza, que o livre mercado vai tirar o homem de suas dores e que a riqueza choverá sobre os emergentes, como festas da uva. Esperança neoliberal. Ou, então, cheios de entusiasmo, como em Porto Alegre, acreditar que homens e mulheres com camisetas de Guevara e tocando o tambor de Mercedes Soza ou com as "veias abertas" de amor pela América Latina, como Galeano, conseguirão reverter a exclusão e a fome, apenas pelo dom mágico das palavras de ordem. Esperança de "esquerda".

São as delícias do auto-engano: nas duas posições, de olhos vidrados, arfantes de certezas, evitaremos o incômodo de ver a evidente vitória do capitalismo mais bruto. Dica de felicidade: esquecer a Arte. Isso mesmo. Essa tal de "Arte" que sempre nos evocou um ideal de harmonia, essa saudade da natureza da qual nos exilamos, essa fome de eternidade tem de acabar de uma vez por todas. Abaixo Bach, Goya, Shakespeare, Rimbaud e toda uma lista negra de velhos idiotas.


Devemos nos banhar nos filmes americanos, nas audições de axé music, de pagodes e raps, de bundas e garrafas, até o momento em que, tomados pela revelação pós-moderna, exclamarmos em lágrimas: "Sim, sim, Schwarzenegger, sim, techno music, sim Celine Dion, sim Phillipe Starck, sim Grisham, sim, eu vi a luz! Aleluia!" Outra dica: tirar da cabeça o velho hábito ocidental do criticismo. Aceitar tudo que nos é oferecido, com lábios trêmulos de gratidão: "Sim, sim, Silvio Santos, sim, Ratinho, sim, Edir Macedo, sim, obedecemos..."

Há muitas formas de ser feliz. Pode ser pela adesão ao princípio do "melhor dos mundos", das pequenas maravilhas do cotidiano: "Ohh... como é belo o amor à vida que esses favelados têm..." ou por uma transposição fatalista meio oriental : "Ohh... esta enchente que matou 200 estava escrita - deve ter um lado bom..." Também é possível ser feliz pela entrega total a uma infelicidade, a um pessimismo absoluto tipo Cioran, pela deliciosa alegria dos céticos, pelo desprezo pela vida lá fora. Sem esquecer os "militantes imaginários" que torcem pelo "bem do Homem", como pelo Palmeiras, com a consciência limpa, em casa, de pijama.

Meus mandamentos de felicidade atual não caberiam neste artigo. Mas as regras básicas são: esquecer os outros e só atentar para si : "Eu sou mais eu..." Entregar-se ao consumo: "A felicidade é meu jeans Calvin Klein." Entregar-se ao narcisismo radical: "Não há popozuda mais siliconada na Avenida." A busca da ignorância mais negra: "Não me venha com papos-cabeça!" Ou mesmo a adesão ao mais remoto feudo-cabeça: "Fora Mallarmé, o resto é lixo..."

E só assim, "alienados", com os olhos bem tapados, com o coração lacrado, com o cultivo da estupidez, com a devoção à baba elástica e bovina dos imbecis, poderemos chegar à revelação final e, num rasgo de felicidade, amar para sempre a beleza do excremento!

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